Por Ana Luiza Portela
REsp 2.174.212-PR, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. para acórdão Ministra Nancy Andrighi, julgado em 1º de abril de 2025 e publicado no DJEN em 7 de abril de 2025.
Em recente julgamento de grande relevância para o Direito Civil, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, decidiu que não se pode afastar o direito à indenização securitária quando o sinistro for causado por beneficiário inimputável, ainda que este tenha agravado o risco contratado.
No caso concreto, o filho da segurada — beneficiário da apólice — foi diagnosticado com esquizofrenia e, durante surto psicótico, tirou a vida da própria mãe, titular do seguro de vida. A seguradora, ao analisar a dinâmica do evento, negou o pagamento da indenização, sob o argumento de que o beneficiário agravou o risco de forma direta, o que, nos termos do art. 768 do Código Civil, ensejaria a perda da cobertura securitária.
O STJ, contudo, interpretou o dispositivo à luz da sua finalidade teleológica, considerando que a sanção prevista na norma pressupõe a manifestação de vontade consciente e dirigida à intensificação do risco segurado. Como o beneficiário se encontrava em estado de inimputabilidade — ou seja, impossibilitado de exteriorizar validamente a própria vontade — não se poderia falar em ato intencional, tampouco em conduta civilmente dolosa.
Assim, a conclusão da Corte foi no sentido de que a inimputabilidade afasta a aplicação do art. 768 do CC, pois a ausência de vontade relevante juridicamente impede a configuração de qualquer forma de agravamento voluntário do risco.
A ausência de norma legal expressa à época dos fatos impôs ao Judiciário o dever de preencher a lacuna normativa utilizando os mecanismos previstos no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — analogia, costumes e princípios gerais do direito.
A decisão também reconheceu que o ato praticado pelo inimputável configura um ato-fato jurídico, que, embora produza efeitos jurídicos, não pode ser equiparado a um ato ilícito, pois carece de um dos seus elementos essenciais: a capacidade de querer. A inimputabilidade, nesse contexto, antecede a própria análise da culpa ou do dolo, razão pela qual não há como impor ao beneficiário a sanção da perda da indenização quando não se verifica conduta intencionalmente danosa.
Como ilustração prática, imagine-se um pai que contrata seguro de vida e indica como beneficiária sua filha única, diagnosticada com transtorno mental severo. Anos depois, em um episódio de descompensação psíquica grave, essa filha acaba provocando, de forma inconsciente e alheia à realidade, a morte do próprio pai. Por mais trágica que seja a circunstância, não se pode extrair da conduta qualquer intenção de causar o sinistro. Nessas hipóteses, não há como aplicar o art. 768 do Código Civil, pois não existe vontade juridicamente relevante, tampouco dolo ou culpa.
O precedente consolida um importante entendimento: não há responsabilização civil sem manifestação de vontade capaz de ser juridicamente valorada. A função social do contrato de seguro, que visa a garantir proteção patrimonial contra riscos futuros e incertos, não pode ser desvirtuada por uma interpretação excessivamente rigorosa que despreze as particularidades da condição psíquica do beneficiário. Com isso, a Terceira Turma do STJ reafirma o compromisso do Direito Civil contemporâneo com a proteção da dignidade humana, especialmente nos casos em que a vulnerabilidade psíquica impede a imputação de responsabilidade nos moldes tradicionais.